"Eu tenho sido frequentemente ameaçado de morte", disse o arcebispo Oscar Romero a um repórter guatemalteco duas semanas antes de seu assassinato, há 30 anos, no dia 24 de março de 1980. "Se as ameaças chegarem a se cumprir, desde agora ofereço meu sangue a Deus pela redenção e ressurreição do El Salvador. Que o meu sangue seja semente de liberdade e sinal de que a esperança logo se transformará em realidade".
Oscar Romero deu sua vida na esperança de que a paz e a justiça se tornassem, um dia, realidade. Ele vive agora em todos aqueles que continuam a luta não-violenta por justiça e paz. Um belo novo livro de fotos e biográfico, "Oscar Romero and the Communion of Saints", de Scott Wright, nos mostra a santa vida que ele viveu e o muito que ele nos deu.
A análise é do jesuíta norte-americano John Dear, em artigo para o sítio National Catholic Reporter, 16-03-2010. Dear também é autor do livro "Oscar Romero and the Nonviolent Struggle for Justice". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Romero viveu até 1977 como um típico clérigo quieto, piedoso, conservador. De fato, como bispo, ele estava ao lado dos grandes proprietários de terras, poderosos importantes e violentos esquadrões da morte. Quando ele se tornou arcebispo, os jesuítas da Universidade Centro-Americana do El Salvador foram aniquilados. Aqueles imediatamente o ignoraram – todos menos um, Rutilio Grande, que se aproximou de Romero nas semanas após sua instalação e pediu insistentemente que ele aprendesse com os pobres e falasse em favor deles.
O próprio Grande foi um gigante da justiça social. Ele organizou os pobres da zona rural de Aguilares e pagou por isso com a sua vida no dia 12 de março de 1977. Permanecendo ao lado do corpo morto de Grande naquela noite, Romero se transformou em um dos maiores defensores dos pobres e dos oprimidos do mundo. A partir de então, ele permaneceu com os pobres e denunciou cada ato de violência, injustiça e guerra. Ele se tornou um feroz profeta da justiça e da paz, "a voz dos sem voz" e, nas palavras de Jon Sobrino, "um novo Jeremias". Para mim, Romero foi um impressionante sinal da presença ativa de Deus no mundo, um símbolo vivo da luta pela justiça e dquilo que a Igreja poderia ser.
No dia seguinte à morte de Grande, Romero fez um sermão que impressionou o El Salvador. Com a força de Martin Luther King Jr., Romero defendeu Grande, exigiu justiça social e econômica para os pobres e convocou cada um a assumir o trabalho profético de Grande. Em protesto à participação do governo nos assassinatos, Romero fechou a escola paroquial durante três dias e cancelou todas as missas no país na semana seguinte, exceto por uma missa especial na catedral.
Esse único ato já teria colocado Romero nos anais da história. Imaginem se todas as missas dos Estados Unidos, menos uma, fossem canceladas em protesto depois da morte do Dr. King! Mais de mil pessoas participaram da missa na catedral naquele domingo e ouviram o forte apelo de Romero à justiça, ao desarmamento e à paz. A vida e a morte de Grande deram um bom fruto no coração e na alma de Romero. De repente, o país passou a ter uma altíssima figura em seu meio.
Um novo Jeremias
Monges, padres, catequistas e trabalhadores da Igreja eram regularmente colocados como alvos e assassinados, por isso Romero falava ainda mais fortemente. Ele criticou até o presidente, o que nenhum bispo salvadorenho e poucos no hemisfério jamais haviam feito antes. Como os esquadrões da morte do governo, apoiados pelos EUA, atacavam vilarejos e igrejas e massacravam campesinos, os discursos de Romero em defesa da verdade se tornavam uma autêntica campanha subversiva de desobediência civil não-violenta.
Logo, Romero foi saudado com aplausos em todos os lugares aonde ia. Milhares de pessoas lhe escreviam regularmente, contando suas histórias, agradecendo-lhe por sua voz profética e compartilhando sua nova e firme coragem. Suas homilias de domingo eram difundidas em todo o país ao vivo pela rádio. O país parava quando ele falava. Todos o ouviam, menos os esquadrões da morte.
Enquanto a estatura de Romero crescia e sua liderança pela justiça e a paz se aprofundava, sua fé simples e sua devoção piedosa permaneciam firmes e lhe davam um fundamento sobre o qual ele podia enfrentar as forças da morte. Para protestar contra o silêncio do governo diante dos massacres recentes, ele se recusou a participar da posse do novo presidente salvadorenho. A Igreja, ele anunciou, "não se mede pelo apoio do governo, mas sim pela sua própria autenticidade, seu espírito evangélico de oração, confiança, sinceridade e justiça, sua oposição aos abusos". Ao encarnar o papel profético da Igreja, ele também modelava esse espírito de oração, confiança e sinceridade em sua vida cotidiana.
Como as prisões, torturas, desaparecimentos e assassinatos continuavam, Romero tomou duas decisões radicais que não tinham precedentes. Primeiro, na segunda-feira de Páscoa de 1978, ele abriu o seminário no centro de San Salvador para acolher quaisquer e todas as vítimas desalojadas da violência. Centenas de sem-teto, famintos e pessoas brutalizadas se mudaram para o seminário, transformando o quieto ambiente religioso em um refúgio lotado e barulhento, em um hospital provisório e em um espaço de recreação. (Eu me lembro de ter ajudado lá por alguns dias em 1985 e ter tentado imaginar como uma ação evangélica dessas seria vista nos EUA. Nunca tivemos uma ação dessas por parte de nossos líderes locais).
Em seguida, ele parou a construção da nova catedral de San Salvador. Quando a guerra tiver acabado, os famintos forem alimentados, e as crianças, educadas, então podemos terminar de construir a nossa catedral, disse Romero. Ambas as medidas históricas assombraram os outros bispos, emitiram julgamentos sobre o governo salvadorenho e elevaram os espíritos do povo.
Enquanto isso, a pregação de Romero atingia alturas bíblicas. "Como uma voz que clama no deserto", disse, "devemos continuar continuamente dizendo não à violência e sim à paz". Sua carta pastoral de 1978 destacou os males da "violência institucional" e da repressão e defendia "o poder da não-violência que hoje tem notáveis estudantes e seguidores". Ele escreveu: "O conselho do Evangelho a oferecer a outra face para um agressor injusto, longe de ser passivo ou covarde, mostra a grande força moral que deixa o agressor moralmente derrotado e humilhado. Os cristãos sempre preferem a paz à guerra".
Pobre entre os pobres
Romero vivia em um pequena casa de três cômodos nos fundos de um hospital dirigido por uma comunidade de irmãs. Durante seus dias mais cheios, ele viajava pelo país, se encontrava com centenas de salvadorenhos pobres, presidia a missa e se encontrava com líderes comunitários. Ele ajudava a cada um que podia. Mais tarde, ele disse que uma de suas primeiras obrigações como arcebispo se tornou não apenas desafiar o governo apoiado pelos EUA e seus esquadrões da morte, mas também exigir os corpos de suas vítimas, incluindo padres, irmãs e catequistas.
Em uma de minhas visitas, um salvadorenho me contou que Romero ia até o lixão da cidade para procurar, entre o lixo, as vítimas torturadas que eram ali descartadas pelos esquadrões da morte, em favor de seus parentes em sofrimento. "Nestes dias, eu caminho pelas estradas recolhendo amigos mortos, ouvindo viúvas e órfãos e tentando espalhar esperança", disse.
Em particular, Romero encontrava tempo todos os dias para conversar com as dezenas de pessoas ameaçadas pelos esquadrões da morte do governo. As pessoas faziam fila em frente ao seu escritório para pedir ajuda e proteção, para se queixar dos assédios e ameaças de morte e para encontrar algum apoio e liderança em seus momentos de aflição e conflito. Romero recebia e ouvia a todos. Seu ouvido compassivo alimentava sua voz profética.
No final de 1979 e começo de 1980, seus sermões dominicais revelaram seus mais fortes apelos à conversão à justiça e por um fim aos massacres. "Para aqueles que carregam em suas mãos ou em sua consciência o fardo do derramamento de sangue, dos ultrajes, dos vitimizados, inocentes ou culpados, mas mesmo assim vitimizados em sua dignidade humana, eu digo: convertam-se. Vocês não podem encontrar Deus no caminho da tortura. Deus se encontra no caminho da justiça, da conversão e da verdade".
Quando o presidente norte-americano Jimmy Carter anunciou, em fevereiro de 1980, que iria aumentar a ajuda militar dos EUA ao El Salvador em mais alguns milhões de dólares por dia, Romero ficou chocado. Ele escreveu uma longa carta pública a Carter, pedindo que os EUA cancelassem todas as ajudas militares. Carter ignorou o apelo de Romero e enviou a ajuda. (Entre 1980 e 1992, os EUA gastaram 6 bilhões de dólares para matar 75 mil pobres salvadorenhos).
Nas semanas seguintes, as mortes aumentaram. Assim como as ameaças de morte contra Romero. Ele fez um retiro pessoal, se preparou para sua morte, descobriu uma paz ainda mais profunda e subiu ao púlpito. Durante o seu sermão dominical do dia 23 de março de 1980, Romero se libertou e fez um dos maiores apelos pela paz e o desarmamento da história da Igreja:
"Eu gostaria de fazer um apelo de forma especial aos homens do Exército e, concretamente, às bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quartéis. Irmãos, vocês são do nosso mesmo povo, matam seus próprios irmãos agricultores, e diante de uma ordem de matar que um homem dê, deve prevalecer a Lei de Deus que diz: `Não Matar`. Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a Lei de Deus. Uma lei imoral, ninguém tem que cumprir. Já é tempo de que vocês recuperem sua consciência e que obedeçam antes à sua consciência que à ordem do pecado. A Igreja, defensora dos direitos de Deus, da Lei de Deus, da dignidade humana, da pessoa, não pode ficar calada diante de tanta abominação. Queremos que o governo leva a sério que de nada servem as reformas se são tingidas com tanto sangue. Em nome de Deus, pois, e em nome desse sofrido povo cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, suplico-lhes, rogo-lhe, ordeno-lhes em nome de Deus: cesse a repressão!"
No dia seguinte, 24 de março de 1980, Romero presidiu uma pequena missa vespertina na capela do hospital onde ele vivia, em honra a uma mulher que havia falecido no ano anterior. Ele leu o Evangelho de João: "Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas, se morre, produz muito fruto" (12, 23-26). Então, pregou sobre a necessidade de dar nossas vidas pelos outros, como Cristo fez. Assim que concluiu, foi alvejado no coração por um homem que estava nos fundos da Igreja. Ele caiu por trás do altar e desfaleceu aos pés de um grande crucifixo que retratava um Cristo sangrento e machucado. As vestes de Romero e o chão ao seu redor ficaram cobertos de sangue. Ele ofegou em busca de ar e morreu em poucos minutos.
Exemplo de santo e mártir
Eu me lembro exatamente onde eu estava quando eu ouvi a notícia - na minha sala comum da Duke University. Eu tinha recém ligado a TV para ver as notícias da noite. Apenas um mês antes, eu decidi entrar para os jesuítas, para tentar passar a minha vida seguindo Jesus. A notícia chocante da morte desse bravo arcebispo me atordoou, me inspirou e me encorajou a seguir adiante na minha decisão. Mais tarde naquela noite, uma vigília pela paz e uma oração pública foram realizadas no campus. Meu amigo Paul Farmer, que dormia no quarto ao lado, marca a sua conversão a partir desse episódio. (Farmer se tornaria doutor e professor da Universidade de Harvard e fundador do Partners In Health, organização internacional de saúde e justiça social). Nós dois fomos tocados e modificados pelo dom de Romero.
O funeral de Romero se tornou a maior demonstração da história salvadorenha, alguns dizem até da história da América Latina. O governo estava com muito medo das pessoas em sofrimento, chegando a jogar bombas na multidão e a abrir fogo, matando cerca de 30 pessoas e ferindo centenas mais. A Missa da Ressurreição nunca foi finalizada, e Romero foi enterrado às pressas.
Apenas recentemente eu fiquei sabendo a partir de uma de suas biografias que o Papa João Paulo II havia decidido remover Romero como arcebispo de San Salvador. De fato, ele assinou a ordem de remoção na manhã do dia 24 de março. De alguma forma, eu fico grato que Romero não tenha chegado a viver para ouvir essa terrível notícia. Seu martírio se tornou uma explosão espiritual que continua transformando a Igreja e o mundo.
Hoje, lembramos de Oscar Romero como um santo e um mártir, um defensor dos pobres e profeta da justiça. Ele nos chama a viver em solidariedade com os pobres e oprimidos, a pensar com eles, a sentir com eles, a caminhar com eles, a servi-los, a permanecer com eles, a se tornar um deles e até a morrer com eles. Nessa solidariedade preferencial, ele nos convoca a continuar a sua busca profética de justiça e desarmamento.
Trinta anos depois, enquanto as guerras e a pobreza continuam, a conversão, a morte e a ressurreição de Romero nos leva a uma conversão mais profunda em favor dos pobres do mundo, especialmente a ficar do lado das últimas vítimas das guerras promovidas pelos EUA. Seu exemplo profético nos desafia a nos pronunciar como nunca antes e também a denunciar as guerras de Obama no Iraque e no Afeganistão; os nossos campos de treinamento de assassinatos e câmaras de execução; nossas prisões e centros de tortura, como Guantánamo; nossa ganância corporativa e nosso sistema injusto; e a nossa falta de financiamento para alimentos, roupas, educação, emprego, habitação e um sistema de saúde verdadeiramente universal. Romero chamou a guerra e a pobreza como pecaminosas, idólatras e demoníacas. Precisamos fazer o mesmo com a mesma fé, força e determinação.
Durante um dos primeiros aniversários de morte de Romero, os salvadorenhos distribuíram panfletos com uma foto preto e branco de Romero e uma legenda que dizia: "Queremos mais bispos como Romero!". Eu realmente desejo que tenhamos mais bispos e padres como Romero hoje. Nós certamente temos um - o nosso próprio herói, Dom Thomas Gumbleton [bispo-auxiliar emérito da arquidiocese de Detroit]. Mas eu acho que Romero define um novo padrão, que deve ser anunciado e ensinado em todo o mundo. Ele não apenas deveria ser canonizado e amplamente honrado, ele deveria ser estudado e ensinado como um padre e bispo modelo, o católico e cristão modelo.
Eu sei que não podemos esperar por esse dia, pela conversão dos outros. Nós mesmos precisamos nos converter e continuar o trabalho profético de Romero. Essa é a melhor forma para relembrar São Oscar Romero - fazer o que podemos, servir aqueles em necessidade, defender a justiça, nos pronunciar em defesada paz e seguir o não-violento Jesus. Dessa forma, Romero ressuscita em nós, Cristo ressuscita em nós, o reino de Deus é acolhido, e a nossa ressurreição é assegurada.
FONTE: IHU
Oscar Romero deu sua vida na esperança de que a paz e a justiça se tornassem, um dia, realidade. Ele vive agora em todos aqueles que continuam a luta não-violenta por justiça e paz. Um belo novo livro de fotos e biográfico, "Oscar Romero and the Communion of Saints", de Scott Wright, nos mostra a santa vida que ele viveu e o muito que ele nos deu.
A análise é do jesuíta norte-americano John Dear, em artigo para o sítio National Catholic Reporter, 16-03-2010. Dear também é autor do livro "Oscar Romero and the Nonviolent Struggle for Justice". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Romero viveu até 1977 como um típico clérigo quieto, piedoso, conservador. De fato, como bispo, ele estava ao lado dos grandes proprietários de terras, poderosos importantes e violentos esquadrões da morte. Quando ele se tornou arcebispo, os jesuítas da Universidade Centro-Americana do El Salvador foram aniquilados. Aqueles imediatamente o ignoraram – todos menos um, Rutilio Grande, que se aproximou de Romero nas semanas após sua instalação e pediu insistentemente que ele aprendesse com os pobres e falasse em favor deles.
O próprio Grande foi um gigante da justiça social. Ele organizou os pobres da zona rural de Aguilares e pagou por isso com a sua vida no dia 12 de março de 1977. Permanecendo ao lado do corpo morto de Grande naquela noite, Romero se transformou em um dos maiores defensores dos pobres e dos oprimidos do mundo. A partir de então, ele permaneceu com os pobres e denunciou cada ato de violência, injustiça e guerra. Ele se tornou um feroz profeta da justiça e da paz, "a voz dos sem voz" e, nas palavras de Jon Sobrino, "um novo Jeremias". Para mim, Romero foi um impressionante sinal da presença ativa de Deus no mundo, um símbolo vivo da luta pela justiça e dquilo que a Igreja poderia ser.
No dia seguinte à morte de Grande, Romero fez um sermão que impressionou o El Salvador. Com a força de Martin Luther King Jr., Romero defendeu Grande, exigiu justiça social e econômica para os pobres e convocou cada um a assumir o trabalho profético de Grande. Em protesto à participação do governo nos assassinatos, Romero fechou a escola paroquial durante três dias e cancelou todas as missas no país na semana seguinte, exceto por uma missa especial na catedral.
Esse único ato já teria colocado Romero nos anais da história. Imaginem se todas as missas dos Estados Unidos, menos uma, fossem canceladas em protesto depois da morte do Dr. King! Mais de mil pessoas participaram da missa na catedral naquele domingo e ouviram o forte apelo de Romero à justiça, ao desarmamento e à paz. A vida e a morte de Grande deram um bom fruto no coração e na alma de Romero. De repente, o país passou a ter uma altíssima figura em seu meio.
Um novo Jeremias
Monges, padres, catequistas e trabalhadores da Igreja eram regularmente colocados como alvos e assassinados, por isso Romero falava ainda mais fortemente. Ele criticou até o presidente, o que nenhum bispo salvadorenho e poucos no hemisfério jamais haviam feito antes. Como os esquadrões da morte do governo, apoiados pelos EUA, atacavam vilarejos e igrejas e massacravam campesinos, os discursos de Romero em defesa da verdade se tornavam uma autêntica campanha subversiva de desobediência civil não-violenta.
Logo, Romero foi saudado com aplausos em todos os lugares aonde ia. Milhares de pessoas lhe escreviam regularmente, contando suas histórias, agradecendo-lhe por sua voz profética e compartilhando sua nova e firme coragem. Suas homilias de domingo eram difundidas em todo o país ao vivo pela rádio. O país parava quando ele falava. Todos o ouviam, menos os esquadrões da morte.
Enquanto a estatura de Romero crescia e sua liderança pela justiça e a paz se aprofundava, sua fé simples e sua devoção piedosa permaneciam firmes e lhe davam um fundamento sobre o qual ele podia enfrentar as forças da morte. Para protestar contra o silêncio do governo diante dos massacres recentes, ele se recusou a participar da posse do novo presidente salvadorenho. A Igreja, ele anunciou, "não se mede pelo apoio do governo, mas sim pela sua própria autenticidade, seu espírito evangélico de oração, confiança, sinceridade e justiça, sua oposição aos abusos". Ao encarnar o papel profético da Igreja, ele também modelava esse espírito de oração, confiança e sinceridade em sua vida cotidiana.
Como as prisões, torturas, desaparecimentos e assassinatos continuavam, Romero tomou duas decisões radicais que não tinham precedentes. Primeiro, na segunda-feira de Páscoa de 1978, ele abriu o seminário no centro de San Salvador para acolher quaisquer e todas as vítimas desalojadas da violência. Centenas de sem-teto, famintos e pessoas brutalizadas se mudaram para o seminário, transformando o quieto ambiente religioso em um refúgio lotado e barulhento, em um hospital provisório e em um espaço de recreação. (Eu me lembro de ter ajudado lá por alguns dias em 1985 e ter tentado imaginar como uma ação evangélica dessas seria vista nos EUA. Nunca tivemos uma ação dessas por parte de nossos líderes locais).
Em seguida, ele parou a construção da nova catedral de San Salvador. Quando a guerra tiver acabado, os famintos forem alimentados, e as crianças, educadas, então podemos terminar de construir a nossa catedral, disse Romero. Ambas as medidas históricas assombraram os outros bispos, emitiram julgamentos sobre o governo salvadorenho e elevaram os espíritos do povo.
Enquanto isso, a pregação de Romero atingia alturas bíblicas. "Como uma voz que clama no deserto", disse, "devemos continuar continuamente dizendo não à violência e sim à paz". Sua carta pastoral de 1978 destacou os males da "violência institucional" e da repressão e defendia "o poder da não-violência que hoje tem notáveis estudantes e seguidores". Ele escreveu: "O conselho do Evangelho a oferecer a outra face para um agressor injusto, longe de ser passivo ou covarde, mostra a grande força moral que deixa o agressor moralmente derrotado e humilhado. Os cristãos sempre preferem a paz à guerra".
Pobre entre os pobres
Romero vivia em um pequena casa de três cômodos nos fundos de um hospital dirigido por uma comunidade de irmãs. Durante seus dias mais cheios, ele viajava pelo país, se encontrava com centenas de salvadorenhos pobres, presidia a missa e se encontrava com líderes comunitários. Ele ajudava a cada um que podia. Mais tarde, ele disse que uma de suas primeiras obrigações como arcebispo se tornou não apenas desafiar o governo apoiado pelos EUA e seus esquadrões da morte, mas também exigir os corpos de suas vítimas, incluindo padres, irmãs e catequistas.
Em uma de minhas visitas, um salvadorenho me contou que Romero ia até o lixão da cidade para procurar, entre o lixo, as vítimas torturadas que eram ali descartadas pelos esquadrões da morte, em favor de seus parentes em sofrimento. "Nestes dias, eu caminho pelas estradas recolhendo amigos mortos, ouvindo viúvas e órfãos e tentando espalhar esperança", disse.
Em particular, Romero encontrava tempo todos os dias para conversar com as dezenas de pessoas ameaçadas pelos esquadrões da morte do governo. As pessoas faziam fila em frente ao seu escritório para pedir ajuda e proteção, para se queixar dos assédios e ameaças de morte e para encontrar algum apoio e liderança em seus momentos de aflição e conflito. Romero recebia e ouvia a todos. Seu ouvido compassivo alimentava sua voz profética.
No final de 1979 e começo de 1980, seus sermões dominicais revelaram seus mais fortes apelos à conversão à justiça e por um fim aos massacres. "Para aqueles que carregam em suas mãos ou em sua consciência o fardo do derramamento de sangue, dos ultrajes, dos vitimizados, inocentes ou culpados, mas mesmo assim vitimizados em sua dignidade humana, eu digo: convertam-se. Vocês não podem encontrar Deus no caminho da tortura. Deus se encontra no caminho da justiça, da conversão e da verdade".
Quando o presidente norte-americano Jimmy Carter anunciou, em fevereiro de 1980, que iria aumentar a ajuda militar dos EUA ao El Salvador em mais alguns milhões de dólares por dia, Romero ficou chocado. Ele escreveu uma longa carta pública a Carter, pedindo que os EUA cancelassem todas as ajudas militares. Carter ignorou o apelo de Romero e enviou a ajuda. (Entre 1980 e 1992, os EUA gastaram 6 bilhões de dólares para matar 75 mil pobres salvadorenhos).
Nas semanas seguintes, as mortes aumentaram. Assim como as ameaças de morte contra Romero. Ele fez um retiro pessoal, se preparou para sua morte, descobriu uma paz ainda mais profunda e subiu ao púlpito. Durante o seu sermão dominical do dia 23 de março de 1980, Romero se libertou e fez um dos maiores apelos pela paz e o desarmamento da história da Igreja:
"Eu gostaria de fazer um apelo de forma especial aos homens do Exército e, concretamente, às bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quartéis. Irmãos, vocês são do nosso mesmo povo, matam seus próprios irmãos agricultores, e diante de uma ordem de matar que um homem dê, deve prevalecer a Lei de Deus que diz: `Não Matar`. Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a Lei de Deus. Uma lei imoral, ninguém tem que cumprir. Já é tempo de que vocês recuperem sua consciência e que obedeçam antes à sua consciência que à ordem do pecado. A Igreja, defensora dos direitos de Deus, da Lei de Deus, da dignidade humana, da pessoa, não pode ficar calada diante de tanta abominação. Queremos que o governo leva a sério que de nada servem as reformas se são tingidas com tanto sangue. Em nome de Deus, pois, e em nome desse sofrido povo cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, suplico-lhes, rogo-lhe, ordeno-lhes em nome de Deus: cesse a repressão!"
No dia seguinte, 24 de março de 1980, Romero presidiu uma pequena missa vespertina na capela do hospital onde ele vivia, em honra a uma mulher que havia falecido no ano anterior. Ele leu o Evangelho de João: "Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas, se morre, produz muito fruto" (12, 23-26). Então, pregou sobre a necessidade de dar nossas vidas pelos outros, como Cristo fez. Assim que concluiu, foi alvejado no coração por um homem que estava nos fundos da Igreja. Ele caiu por trás do altar e desfaleceu aos pés de um grande crucifixo que retratava um Cristo sangrento e machucado. As vestes de Romero e o chão ao seu redor ficaram cobertos de sangue. Ele ofegou em busca de ar e morreu em poucos minutos.
Exemplo de santo e mártir
Eu me lembro exatamente onde eu estava quando eu ouvi a notícia - na minha sala comum da Duke University. Eu tinha recém ligado a TV para ver as notícias da noite. Apenas um mês antes, eu decidi entrar para os jesuítas, para tentar passar a minha vida seguindo Jesus. A notícia chocante da morte desse bravo arcebispo me atordoou, me inspirou e me encorajou a seguir adiante na minha decisão. Mais tarde naquela noite, uma vigília pela paz e uma oração pública foram realizadas no campus. Meu amigo Paul Farmer, que dormia no quarto ao lado, marca a sua conversão a partir desse episódio. (Farmer se tornaria doutor e professor da Universidade de Harvard e fundador do Partners In Health, organização internacional de saúde e justiça social). Nós dois fomos tocados e modificados pelo dom de Romero.
O funeral de Romero se tornou a maior demonstração da história salvadorenha, alguns dizem até da história da América Latina. O governo estava com muito medo das pessoas em sofrimento, chegando a jogar bombas na multidão e a abrir fogo, matando cerca de 30 pessoas e ferindo centenas mais. A Missa da Ressurreição nunca foi finalizada, e Romero foi enterrado às pressas.
Apenas recentemente eu fiquei sabendo a partir de uma de suas biografias que o Papa João Paulo II havia decidido remover Romero como arcebispo de San Salvador. De fato, ele assinou a ordem de remoção na manhã do dia 24 de março. De alguma forma, eu fico grato que Romero não tenha chegado a viver para ouvir essa terrível notícia. Seu martírio se tornou uma explosão espiritual que continua transformando a Igreja e o mundo.
Hoje, lembramos de Oscar Romero como um santo e um mártir, um defensor dos pobres e profeta da justiça. Ele nos chama a viver em solidariedade com os pobres e oprimidos, a pensar com eles, a sentir com eles, a caminhar com eles, a servi-los, a permanecer com eles, a se tornar um deles e até a morrer com eles. Nessa solidariedade preferencial, ele nos convoca a continuar a sua busca profética de justiça e desarmamento.
Trinta anos depois, enquanto as guerras e a pobreza continuam, a conversão, a morte e a ressurreição de Romero nos leva a uma conversão mais profunda em favor dos pobres do mundo, especialmente a ficar do lado das últimas vítimas das guerras promovidas pelos EUA. Seu exemplo profético nos desafia a nos pronunciar como nunca antes e também a denunciar as guerras de Obama no Iraque e no Afeganistão; os nossos campos de treinamento de assassinatos e câmaras de execução; nossas prisões e centros de tortura, como Guantánamo; nossa ganância corporativa e nosso sistema injusto; e a nossa falta de financiamento para alimentos, roupas, educação, emprego, habitação e um sistema de saúde verdadeiramente universal. Romero chamou a guerra e a pobreza como pecaminosas, idólatras e demoníacas. Precisamos fazer o mesmo com a mesma fé, força e determinação.
Durante um dos primeiros aniversários de morte de Romero, os salvadorenhos distribuíram panfletos com uma foto preto e branco de Romero e uma legenda que dizia: "Queremos mais bispos como Romero!". Eu realmente desejo que tenhamos mais bispos e padres como Romero hoje. Nós certamente temos um - o nosso próprio herói, Dom Thomas Gumbleton [bispo-auxiliar emérito da arquidiocese de Detroit]. Mas eu acho que Romero define um novo padrão, que deve ser anunciado e ensinado em todo o mundo. Ele não apenas deveria ser canonizado e amplamente honrado, ele deveria ser estudado e ensinado como um padre e bispo modelo, o católico e cristão modelo.
Eu sei que não podemos esperar por esse dia, pela conversão dos outros. Nós mesmos precisamos nos converter e continuar o trabalho profético de Romero. Essa é a melhor forma para relembrar São Oscar Romero - fazer o que podemos, servir aqueles em necessidade, defender a justiça, nos pronunciar em defesada paz e seguir o não-violento Jesus. Dessa forma, Romero ressuscita em nós, Cristo ressuscita em nós, o reino de Deus é acolhido, e a nossa ressurreição é assegurada.
FONTE: IHU
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